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PERMANECE, | LUBI PRATES julho 23, 2021 por Iaranda Barbosa



Resenha originalmente publicada no Mirada 

Lembranças, saudades e distâncias em “Permanece”, de Lubi Prates 

     Um livro que inicia com páginas escuras e clareia na medida em que a leitura avança. Poemas escritos na língua dos invasores, responsáveis pela diáspora do povo negro a fim de subjugá-lo e futuramente exterminá-lo. Povo esse que “Permanece,”. Não à toa o título da obra de Lubi Prates apresenta uma vírgula, remetendo à ideia de continuidade seja em seu território de origem seja em lugares distantes:

[...] 
i love a black man 
and every day 
when he leaves home 
what i say is: 
don’t forget your I.D. 
don’t forget your passport 
don’t forget your greencard 

sometimes, i ask to myself if 
our great-grandmother said to our great-grandfathers: 
no te olvides de llevar contigo tu carta de manumisión 
no te olvides de llevar contigo la prueba de que eres humano 
la prueba de que eres libre. 
[…] 

    Lubi Prates traz as equivalências identidade-passaporte-autorização e carta de manumissão-prova de que és humano-prova de que és livre. Ela nos faz refletir sobre nossas estratégias de sobrevivência, sobretudo, em países que nos sequestraram e nos ceifaram de nossas raízes. Perdemos nossa própria língua, mas mantivemos o cuidado com os nossos. Aprendemos a língua do outro para nos preservarmos e seguirmos em frente. Permanecemos por meio das lembranças, na pele, na boca, na cor, no cheio, nos territórios para onde fomos levados: 

Hasta aquí, hasta llegar a mí 
você traz na boca 
todo o gosto do mar 
e eu tento adivinhar 
inutilmente
quanto oceanos você atravessou 
hasta aquí, hasta llegar a mí 
para guardar em si 
tanta água, tanto sal 
em cada gota de saliva. 
[...] 
somos filhos da África 
e tudo que contamos através dos nossos corpos 
fala sobre nós, mas no fundo da memória 
guarda nossos ancestrais

    Os paralelismos referentes à água (oceanos, saliva, mar) encaixam-se no que Bachelard, nas páginas 94 e 97 de “A água e os sonhos”, diz sobre esse elemento ao afirmar que: 

A água leva para bem longe, a água passa como os dias. Mas outro devaneio se apossa de nós e nos ensina uma perda de nosso ser na dispersão total! Cada um dos elementos tem sua própria dissolução: a terra tem seu pó, o fogo sua fumaça. A água dissolve mais completamente. [...] Em especial, a água é o elemento mais favorável para ilustrar os temas da combinação dos poderes. Ela assimila tantas substâncias! Traz para si tantas essências! Recebe com igual facilidade as matérias contrárias, o açúcar e o sal. Impregna-se de todas as cores, de todos os sabores, de todos os cheiros. Compreende-se, pois, que o fenômeno da dissolução dos sólidos na água seja um dos principais fenômenos dessa química ingênua que continua a ser a química do senso comum e que, com um pouco de sonho, é a química dos poetas. 

    E é através dessa química dos poetas que Lubi Prates nos apresenta amores que se vão, mas que ao mesmo tempo permanecem, nem que seja através de recordações diluídas, esparsas, intangíveis: 

você não me diz 
como segurar as lembranças. 

você não me diz 
e eu estou 
diante de uma tela 
que embranquece 
estes dias. 

eu tento alcançá-los 
mas eles me escapam: 
a mulher eternamente 
de mãos vazias e 
nenhuma história. 
[...] 

    Os efeitos diaspóricos e sinestésicos provocados pelos versos de Prates, apresentados em poemas na grande maioria sem título, refletem-se também na repetição de palavras e estruturas sintáticas. Tais recursos fomentam o vai e vem das águas do mar, o subir e baixar das marés dos oceanos, o lembrar e o tentar esquecer amores que deixaram o corpo, a alma e a mente adoecidos: 

meu corpo todo tem doído. eu não entendo o que está acontecendo, então não sei nomear. 
eu estou dormindo e, quando acordo, sinto o meu corpo e o sentimento é esse, é a dor. 
não posso dizer: tenho enxaqueca, mas minha cabeça dói. 
não posso dizer: tenho sinusite, mas meu rosto dói. 
não posso dizer: tenho amigdalite, mas minha fala dói. 
não posso dizer: tenho gastrite porque já não tenho estômago. 
[...] 
já não me lembro quando você foi embora porque você ficou. 

    As tentativas de libertar-se desse amor que se foi, mas que permanece, machuca e deixa cicatrizes, também aparecem na exasperação da metáfora:
 
você foi embora e eu cortei a mão.

a mão de acariciar seu cabelo e seu corpo a mão de descansar sobre você enquanto eu dormia. a mão que você segurava na rua. a mão onde eu usava o anel que esqueci na sua casa. 

você foi embora e eu cortei a mão. 

a mão que te abriu a porta, pela última vez. 

você foi embora e eu cortei a mão.

meu psicólogo me perguntou o que isso significa? 

o que isso significa? 

a mão de te possuir, a mão de te libertar não é a mão da minha escrita. 

    O eu lírico necessita acalmar o desespero e, portanto, recorre à tautologia e, ao reiterar, chega à afirmação, ao autoconvencimento, ao autoconhecimento. 
    Destarte, a solidão, a ancestralidade, as relações amorosas, por mais que pareçam distantes, fluidas, opacas, tais quais uma fumaça branca que se esvai ou a água levada pela correnteza, habitam a voz poética e formam um conjunto de fragmentos que permanece.

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