Quando pensamos em nossas referências de leituras a respeito de prisões, as primeiras que aparecem, provavelmente e nesta ordem, são: Estação Carandiru, de Dráuzio Varela, Diário de um detento: o livro, de Jocenir, Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, Vigiar e punir: nascimento da prisão, de Foucault. Todas escritas por homens. Todas sobre homens.
Na contracorrente desse rio que flui em uma única direção está a jornalista Nana Queiroz, provocando redemoinhos, ondas e sumidouros, com a obra “Presos que menstruam. A brutal vida das mulheres – tratadas como homens – nas prisões brasileiras”. O livro, publicado em 2015, inicia com um prefácio que já parte para o enfrentamento e para a reflexão sobre o silenciamento tanto das bibliotecas quanto das produções televisivas e cinematográficas sobre as mulheres nas prisões. A crítica inicial de Nana Queiroz é extremamente válida e atual, pois escassas ainda são as obras e pesquisas que se dedicam a elas e, embora tenhamos uma vasta gama de séries cuja trama é desenvolvida em penitenciárias femininas, as produções apresentam cenários que estão longe da realidade e mulheres encarceradas aparecem, portanto, como meio de entretenimento e diversão. Logo, o que poderia ser um suporte para levar o expectador à reflexão sobre a problemática torna-se um instrumento a mais de objetificação feminina.
As estratégias utilizadas por Nana Queiroz para compor a obra refletem bem a invisibilização que o patriarcado tenta impor sobre a figura da mulher, pois a jornalista, em diversos presídios, fora impedida de levar gravadores ou qualquer equipamento eletrônico de registro. Entretanto, da mesma maneira que desenvolvemos artifícios para seguirmos adiante, a autora conseguiu entrevistar as detentas e construir o livro a partir dos depoimentos que foram assimilados através de fragmentos que se uniram e formaram o tecido narrativo costurado pelos fios da memória da autora. Um tecido cheio de remendos alinhavados por papéis clandestinos escondidos nos bolsos. A tessitura ganha mais corpo quando a autora retoma algumas histórias no meio do livro ou no final, como uma perspectiva de recomeço, um modo de dizer que as narrativas não acabaram ou, ainda, que a realidade daquelas mulheres permanece a mesma.
O livro-reportagem traz em seu título diversos elementos para a reflexão: o substantivo masculino “presos” formando o contraponto com o verbo “menstruam”; o adjetivo “brutal” associado a “vida”, indicando o longo tempo no qual as mulheres permanecem naquele lugar; o aposto posicionado e destacado entre hífens, chamando a atenção e exigindo uma pausa um pouco mais longa; e o complemento que indica a dimensão da pesquisa: acontece em nosso país. O aposto diz “– tratadas como homens –” e no decorrer da leitura comprovamos a força desse trecho ao percebemos que, mesmo dentro da prisão, permanecem a preocupação com os filhos, com a família, a dupla jornada e a coragem que ferve nas veias diante do enfrentamento:
[...] ao contrário dos presos homens, as mulheres não se escondem quando a tropa de choque invade o presídio, mas xingam os policiais, jogam neles objetos e as mais corajosas chegam até a se atirar sobre eles.
– Prefiro mil vezes uma cadeia com 30 mil homens do que uma com cem mulheres – diz ela [a diretora de um dos presídios], enfatizando as palavras para que sejam levadas a sério. – Elas são muito indisciplinadas, arrogantes e não têm medo de nada. Apesar da tropa de choque ser tão agressiva com elas quanto com eles, elas não se acovardam. Acho que a mulher é mais corajosa que o homem em todos os sentidos, ela enfrenta qualquer problema, qualquer desafio, acho que está habituada a fazer isso fora da cadeia.
A capa é um recurso semiótico que complementa o que o leitor acabou de decifrar: apoiadas em uma barra de ferro, duas mãos exibem unhas pintadas com um esmalte azul opaco, descascando.
As situações-limite, o tratamento desumano, os crimes confessos, a mea culpa, a vulnerabilidade social, a carência afetiva, a burocracia, a lentidão da justiça, o HIV, a gravidez, o parto, o puerpério, as renúncias pessoais, a solidão, os dados, as estatísticas, a saúde física e mental, os sonhos, a padronização e a “Institucionalização das presas” são algumas das inúmeras discussões que Nana Queiroz traz à ordem do dia para que essas mulheres deixem de ser ignoradas pela sociedade e para que muitos estereótipos sejam rompidos. Nesse sentido, “Presos que menstruam” está longe de ser uma obra panfletária ou apelativa, pois o discurso vitimista inexiste – haja vista o fato, inclusive, de que a autora consultou, após as entrevistas, para evitar pré- -julgamento ou tendência, o processo de algumas detentas e comparou com os depoimentos já recolhidos.
Por outro lado, é impossível evitar a influência do ambiente na construção das narrativas apresentadas por Nana Queiroz em formato de capítulos curtos. As descrições do cenário incluem os cinco sentidos que nos são apresentados através de cheiros, sensações, ruídos e sinestesias. As palavras da autora se misturam com as das personagens, apresentadas ora com pseudônimos ora com nomes reais (protagonistas de crimes hediondos e de grande repercussão nacional). Tal recurso, associado às variações linguísticas – a fim de marcar a pluralidade, já que a autora visitou diversos presídios pelo país – aproxima “Presos que menstruam” de um livro de contos cujo protagonismo é de mulheres em situação de cárcere.
A jornalista usa diversas técnicas narrativas, entre elas o in media res, a falsa terceira pessoa do singular e a voz narrativa híbrida. Esses recursos deixam o leitor na dúvida entre uma ficção diabolicamente real ou uma realidade diabolicamente digna de ficção. ‘Andando pelas carnes’, por exemplo, é um capítulo que nos faz lembrar bastante Muribeca, de Marcelino Freire, e nos impele a refletir sobre até que ponto a realidade e a ficção se misturam e se separam. Onde a linha tênue entre ficção e realidade é atravessada?, pois as narrativas são absurdamente reais e de realidade absurda. Ademais, Nana Queiroz deixa explícita as suas referências e influências literárias, ao apresentar um capítulo em forma de poema e ao criar títulos como: ‘Amor em espaços de cólera’ e ‘A hora da estrela de Vânia’.
“Presos que menstruam” é um livro imprescindível para que conheçamos e compreendamos realidades outras. Mães, filhas, estudantes, estrangeiras, brasiguaias, indígenas, ricas, pobres... todas nós somos passíveis de estar na mesma situação que aquelas detentas – devido a uma decisão errada, um passo mal dado, um instante de fúria, um vacilo –, habitando uma estrutura pensada ou construída para/por homens e que, quando voltada para as mulheres estava destinada para aquelas consideradas “desajustadas”.
As inquietações afloram no fim dos capítulos e nos incomodam após cada virada de página:
– Eu, por exemplo, estava grávida. Perdi meu filho faz dez dias, sangrei feito porco e ninguém fez nada, não vi um médico. Agora, tô aqui cheia de febres. Vai ver o corpinho tá apodrecendo dentro de mim.
Atualmente as detentas são chamadas de reeducandas, uma mudança lexical interessante e até mesmo bonita, mas, com base no depoimento acima, qual a possibilidade de reeducação dessa mulher? Existe ressocialização para quem não foi socializada?
A leitura nos coloca em meio a dilemas: qual o conceito de verdade, justiça, injustiça, direito, inocência, culpa? As diferenças de gênero saltam aos olhos quando nos perguntamos: A visita íntima é um direito, mas é, e deve ser, respeitada? Independente das respostas, compreendemos que “Presos que menstruam” é um livro sem julgamentos, afinal, aquelas mulheres já foram moral e socialmente julgadas, condenadas e, várias, executadas. Obra imensamente significativa e rica, esse livro que precisa estar ao alcance de todos e, tal qual as situações expostas, não pode ser ignorado.
Nana Queiroz rompe com o silenciamento dessas mulheres, retirando-as da invisibilidade. O estudo e a divulgação dessa obra são imprescindíveis para que a população enxergue as presidiárias enquanto seres humanos e para que mudanças sociais sejam realmente executadas a fim de tornar obsoletas as palavras de Foucault, em Vigiar e Punir, ao afirmar que:
[...] o papel da prisão é ser uma garantia sobre a pessoa e sobre seu corpo [neste caso o feminino]. A prisão assegura que temos alguém, não o pune; e, mais que claro, não ressocializa [...] O ciclo está fechado: da tortura à execução, o corpo [da mulher] produziu e reproduziu a verdade do crime.
Esta resenha foi publicada originalmente na revista Laudelinas n°4 - do Selo Mirada.
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